Em busca da afetividade perdida



Mesmo debilitados devido ao peso dos anos ou dependentes e acamados devido às doenças, a saudável condição física e emocional de meus pais foi sempre alvo de elogios. Aonde quer que os levasse, hospitais, consultórios, praças públicas, shoppings, as pessoas que encontrávamos (desde profissionais da área de saúde a estranhos transeuntes) faziam questão de nos abordarem para expressar sentimentos de apreço diante do que viam.
Emocionada, sentia-me grata e orgulhosa por vê-los atrair a atenção e o carinho de tanta gente! Entretanto, algo me inquietava: havia um tom de espanto, como se fosse algo extraordinário estar diante de nonagenários bem asseados, bem alimentados, com pele íntegra e com brilho no olhar, apesar das condições patológicas. Muitos abraçavam a mim e a minha mãe com lágrimas nos olhos enquanto diziam com vozes embargadas: “que coisa linda! Deus as abençoe!”
Intrigada, porque nunca senti que estivesse fazendo nada de excepcional, quando médicos mais amigos teciam algum comentário desse nível, passei a debater com eles essa sensação de inquietude que me invadia. Ouvi então discretos depoimentos que, resumidamente, me inteiravam de que a grande maioria dos pacientes idosos por eles atendidos está sempre entregue aos cuidados de terceiros, sendo muito raro e dificultoso o contato com algum familiar dos mesmos. Os resultados disso são visíveis: pacientes depressivos, mal nutridos, desidratados e mergulhados em graus de dependência física que não condizem com as condições patológicas apresentadas.
O pior disso tudo é que as diversas situações não podem ser enquadradas como casos de abandono, de negligência ou mesmo de maus tratos: os idosos estão lá, no conforto da casa deles e com pessoas contratadas para os devidos cuidados. Mesmo aqueles que têm algum familiar morando com eles são condenados ao ostracismo: geralmente restritos ao quarto ou poltrona na sala de visitas não são estimulados a participar de conversas ou expressar seus sentimentos ou opiniões.
E assim histórias e mais histórias acontecem desde sempre e se repetem pelo mundo afora. Os direitos humanos, as cartas magnas das nações, os estatutos sejam do idoso ou da criança e do adolescente, são meras palavras escritas num papel sob a menção honrosa de ter força de lei… Mas mesmo supondo que tais leis serão cumpridas pelo receio às punições previstas caso venham a ser desrespeitadas, o afeto, a fraternidade, o amor por nós mesmos refletindo-se no amor pelo outro jamais poderão ser obtidos pela força de nenhuma imposição.
A ciência avança em suas pesquisas e vai descobrindo meios de aliviar o sofrimento ou curar o corpo debilitado por doenças, acidentes ou até mesmo corrigir os efeitos ‘antiestéticos’ do envelhecimento; a tecnologia avança permitindo uma maior proximidade entre os indivíduos e oferecendo meios para que se tenha mais conforto e tempo disponível para usufruir do prazer de viver…
Entretanto, cada vez mais não sobra tempo… Cada vez mais as pessoas vivem isoladas e prisioneiras do medo da violência intensificada em todas as camadas sociais… Cada vez mais a morte de jovens se alastra pelo mundo afora, restando aos velhos enterrarem seus filhos e netos enquanto, sob o peso da idade, sofrem os atropelos impostos por todos os segmentos de uma sociedade que quando não os abandonam à própria sorte, os mantêm afastados de toda sua complexa dinâmica de relações. Paradoxalmente, segundo pesquisas mais atuais, mesmo vivendo de parcas aposentadorias, são eles que atualmente se destacam como mantenedores da sustentação econômica da família, uma vez que os filhos adultos – seja pela escassez de empregos, seja pelas condições econômicas deficitárias, seja por mortes prematuras – continuam na dependência financeira dos velhos pais para criarem os próprios filhos e tocarem adiante as próprias vidas.
Estamos sempre dispostos a julgar e condenar os outros mas nunca admitimos a nossa parcela de responsabilidade sobre tudo o que acontece, como se a sociedade fosse uma entidade autônoma que atua sem a nossa participação, sem a nossa conivência. Excluímo-nos sempre quando algo nos choca e desagrada, entretanto, seja por omissão, indiferença ou ação direta, cada um de nós alimenta e torna possível o funcionamento de toda uma engrenagem que repudiamos e sob a qual nos sentimos sufocar.
Há um imensurável buraco na teia do sistema que sustenta toda essa engrenagem social. Há um profundo abismo sob os pés da humanidade que parece precipitar-se às cegas numa corrida desenfreada rumo… a quê? Só o tempo dirá, se ainda (para o Homem) tempo houver…
Fonte:http://www.cuidardeidosos.com.br/

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